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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Crônica


Velhice << Kika Coutinho

Eu devia ter uns doze anos quando resolvi que ia gostar de futebol. Armada de uma camisa do Corinthians, uma dezena de opiniões fraquíssimas sobre o assunto, e uma dose de rebeldia, cheguei ao Pacaembu para um clássico daqueles. Era uma tarde quente de verão e, ao meu lado, torcia o São Paulino fanático, inimigo da partida, rival dos grandes, sentávamos lado a lado. Ele xingava, eu também, meu pai também, meu irmão mais ainda, os amigos dele idem. Era uma barbárie aquilo, mas, uma bárbarie em paz; quem diria? Depois de uma curtíssima temporada no assunto, guardo lembranças divertidas dessa época, e chego a duvidar que era assim. Perguntei outro dia para um amigo, entendedor do assunto: Posso jurar que vivi numa época em que não havia separação de torcida, nos estádios. Sonhei? Cheirei ácido, ou o quê? - Envelheceu, respondeu meu colega, cheio de nostalgia - Até por achar que ácido se cheira, você realmente está fora da casinha - Completou. Ah tá. De fato. Houve um tempo em que as torcidas podiam sentar-se lado a lado nos estádios. Inimaginável em dias de guerra como hoje, não? A idade nos faz ver tudo com cores diferentes, mesmo. Saquei da minha péssima memória, outros clássicos do passado, que nossos filhos não conhecerão: Dirigir com o braço pra fora do carro, quem não se lembra? Meu pai dirigia assim, as mãos penduradas na janela do carro, inteirinha aberta, um ventinho gostoso nos dando a falsa sensação de liberdade. Eu, criança, assistia a tudo deitada (!!) no banco traseiro do nosso Opala. Lembro das copas das árvores, os fios dos postes e, mais no alto ainda, as nuvens de algodão, formando-se diante dos meus olhos infantis, e incautos. Conforme fui crescendo meus pés se erguiam um pouco; eu permanecia deitada, agora, com os pés pra cima, grudados no vidro fechado ddo carro. Que criança pode ficar deitada no banco de trás de um carro? Como mesmo que vivemos até aqui? Éramos heróis, não? Parávamos em fila dupla, comiámos pele de frango (bem torradinha), deixávamos o carro um instantinho ali, no meio da rua, para pegar uma encomenda, um horror. Ainda por cima tínhamos empregadas que dormiam em casa, iam embora de 15 em 15 dias, aos domingos, e olhe lá. Nossos pais, avós fumavam e fumavam em aviões, escritórios, ônibus, uma coisa maluca. Os entregadores de pizza vinham até a nossa porta, que vivia aberta. Hoje, vejam, tem uma tal de uma roda onde largam a pizza, falam só por interfone, e sinto que não tardarão em revistar nossa muzzarela, revirarão os tomates, não quero nem pensar. A vida muda um bocado, mesmo, e, isolados os adjetivos e as polêmicas, sem clichês de certo e errado, involução ou evolução, nada disso convém. O que é claro e certeiro, isso sim, meu amigo entendedor de futebol tem razão, é que quando a gente começa a achar que tudo era diferente, que os políticos não eram assim tão ruins, e as pessoas podiam confiar umas nas outras, o diagnóstico é preciso: Velhice. Não tem como escapar.


Fonte: Crônica do Dia 

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